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Crise de Identidade



De vez em quando vou ver cinema português. Neste caso fi-lo por diversas razões: por ser o primeiro filme estreado nas salas totalmente financiado por privados e por ter tido eu próprio uma ideia de curta metragem igualzinha a este "Funeral à Chuva" - reencontro de amizades desavindas num cenário de perda e suas inerentes e espontâneas revelações/tensões.

Mas...mais uma desilusão. As personagens são banalíssimas. O gay, a actriz frustrada que se dedica a concursos televisivos, o bronco, o viajante diletante, o austero professor universitário (é mesmo esta inconsequente e exagerada personagem do mórbido bimbo da Covilhã e seu absurdo arco de libertação que mais ferem de morte este filme)...

Quer ser um "Amigos de Alex" à portuguesa mas o resultado é (como sempre) bem à americana. Na realidade, as convenções de género parecem-me mal assimiladas no cinema em Portugal. Obedece-lhes mas nem as consegue concretizar. Como a maior parte do que cá se faz este filme tem a singularidade de fazer rir nos momentos dramáticos e engolir em seco nas partes cómicas tal é a ineficácia dos seus diálogos e encenação.
A magreza de recursos e a natureza pro bono das suas contribuições (totalmente remuneradas com % e futuros royaltees - interessante) deverá ter acelerado para lá do desejável a rodagem do filme. Isso nota-se na ausência de clima e no pouco convincente de tom de comédia negra que gostaria de gerar.

A cena final do funeral (por exemplo) foi, magreza de recursos oblige, quase totalmente filmada em plano sequência num take quando estavam previstos 40 planos. O arrojo de tal espontaneidade poderia ter gerado magia mas está longe de ser isso o que acontece porque toda a cena é manipuladoramente lamechas e risível do princípio ao fim. Teria para isso que ter uma ideia forte sem o folclore fúnebre e os momentos de libertação absurdos que produz nalgumas personagens: a actriz frustrada reconhecida na elegia liga ao seu produtor e despede-se, o professor teso que nem um carapau assume a alegria de viver a que a morte dá sentido...dá para ficar com uma ideia?;)

Filmar com parcos recursos e sem apoios públicos é, num mercado acanhado como o nosso, sempre, de louvar. Mas este apenas será um frutífero caminho se à independência de dinheiros públicos corresponder alguma independência criativa. É a força e coerente defesa de uma ideia que pode suportar o compromisso prático diário de um orçamento limitado.
Disse Luis Campos (guionista do filme), a este propósito, que nos primeiros drafts a ideia original era de maior tensão e sobretudo focada no jantar que reune os amigos. Mas para que a aposta fosse comercialmente viável outras opções foram tomadas mantendo (desejavelmente) a integridade da sua inspiração pessoal. Queria-se ter um objecto indie imerso nas malhas do gosto público...velha quimera. Nada disso aconteceu mas sim mais um objecto com clara crise de identidade.
Esta leitura simplista das expectativas do público pode ser tão ou mais coerciva que a ditadura do "autor" do ICA que tantos se querem libertar. Pensa-se pequeno reproduzindo e perpetuando as fragilidades do nosso mercado. "Dar ao público o que ele quer" não é seguramente isto. Estão aí as ridículas estatísticas do cinema português a prová-lo.


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