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A Hipnose do Cinema




Fui à mostra de cinema documental de Lisboa "Panorama" este sábado!
Vi dois filmes seguidos, ambos com a temática do ultramar. O alcance, esse, altamente desigual.

O primeiro, "Apoteose" de António Borges Correia, acompanha o reencontro de veteranos de guerra com seu peso e fantasmas. Mune-se de todo o tipo de artifícios: desde vozes sobrepostas que sugerem a paranóia e stress pós-guerra à absurda encenação final de guerra, os freezes da imagem sem critério nem impacto, enfim...formas desgarradas de espremer ao limite a sua envolvência.


O segundo, "48" de Susana de Sousa Dias (vencedor do "Cinéma du Réel" este ano), reune um conjunto de fotografias de cadastro de prisioneiros políticos e das suas vozes,traçando um fortíssimo retrato dos 48 anos de ditadura em Portugal.

Tem um raríssimo ingrediente de duplo vanguardismo: faz-nos enfrentar a realidade da tortura e do tabu fascista num país que muito pouco se massa em repisar tão negro episódio colectivo; e é um tratado fascinante da hipnose do cinema e das possibilidades psicológicas mais primárias da percepção som/imagem.

As fotografias de arquivo sucedem-se, manipuladas com critério e parcimónia. São acompanhadas de relatos. Todos eles lancinantes, super reveladores mas também autênticas pérolas de musicalidade. Mas daquelas frases que um guionista apenas pode invejar tal a sua realidade e idiossincracia. Alguns descrevem sensações, outros, auto-reflexivos, fazem a síntese crítica da suas próprias biografias e narrativas pessoais.
A gestão dos silêncios, murmúrios, suspiros é brilhante e potencia o nosso mergulho emocional nos sofridos momentos retratados. Com o efeito produzido pelo filme, algumas pessoas mais sensíveis sairam mesmo da sala antes do seu fim.

Um filme far-se-á sempre das possibilidades dramáticas e técnicas do seu media. Mas só um olhar fecundo lhe pode emprestar grandeza e "tridimensionalidade". Foi que o meu sábado me fez perceber com uma nitidez inédita - é uma questão de unhas de facto;)

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