Tinha 15 anos. Num típico isolamento adolescente fui para o quarto ver televisão num sábado à noite enquanto a família estava na sala. Na era do monopólio público da televisão as opções eram escassas. Na Tv2 começava a rubrica “O Filme da Minha Vida”. A convidada da noite era a Catarina Portas. Apresentava “Les Amants du Pont Neuf” (1991) uma paixão que contraiu numa sua estadia em Paris. Lembro-me perfeitamente do efeito que teve sobre mim. Começava negro, com personagens marginais num típico clima existencialista do cinema francês. Naquela noite, tive o primeiro sentido de humanismo e sentido crítico ao ver televisão. Podem achar exagerado, mas foi uma experiência de crescimento.
Era um adolescente reservado, taciturno e algo solitário. Foi nos filmes que me senti em comunhão com outras pessoas. As primeiras viagens à minha consciência e densidade fizeram-se com filmes e Binoche teve um papel quase inaugural nesse despertar.
No meio de todo a miséria humana e disfunção emocional dos protagonistas do filme há imagens muito fortes e marcantes de espontaneidade e libertação que me marcaram. Julliete Binoche transmitia com seu olhar um enorme vazio mas também um férreo desejo de mudança. Transmitia tristeza e alegria com igual amplitude e comoção. Aliás, Godard descobriu-a e convidou-a para “Je vous salue, Marie” (1985) depois de ver uma foto sua. Nela Juliette mostrava o seu olhar penetrante. Descreve agora as circunstâncias da mesma. Estava no momento amuada com o seu primeiro namorado. Mas já lá estava o olhar, a presença e a sua vibrante fotogenia! Pude logo a seguir confirmar o tal ar inocente mas torturado num dos outros filmes da minha vida: “A Inustentável Leveza do Ser” de Phillip Kaufman. E depois a sua face mais visceral, sexual e obsessiva em “Damage” de Louis Malle. Estava feita a apresentação. Fiquei fascinado!
Não mais a perdi de vista. Pesquisei o seu percurso e percebi, com a sua precocidade (no Conservatório aos 15) e por ter nascido no teatro (ambos os pais actores), donde lhe vinha esta relação de entrega incondicional com a arte. A própria actriz diz no documentário Binoche sur Les Yeux, realizado pela sua irmã Marion (apresentado no Festival do Estoril), que cresceu a ver o pai excepcional em palco e a compulsão para o teatro da sua mãe. Assim, desde cedo e depois da primeiras experiências em palco encontrou o seu desígnio. Revelar emoções através da auto-descoberta – representar! Vem daí a paixão invulgar com que se entrega aos papeis. No seu livro “Portraits in Eyes” em que retrata subjectivmente os realizadores com que trabalhou nos seus 25 anos de carreira diz no prefácio: “in films I allways want to get closer, too close perhaps...”. Sendo a rodagem de um filme uma experiência à qual se entrega com toda a sua energia emocional é com naturalidade a importância que uma comunhão espiritual e ligação intensa com os realizadores seja tão fundamental. O cinema é, para Binoche, literalmente, uma obra de amor!
Aprendeu para André Techiné a tocar violino com o mesmo amor que se entregou recentemente à dança numa digressão internacional de nome “In I” com o coreógrafo Akram Khan.
Refere-se a técnica como algo atrás do qual se pode esconder. No bailado a sensação de nudez, da qual nunca fugiu na sua carreira, é total por não dominar essa técnica. Esse desafio permanente aos seus medos é o mote da sua vida.
Deu-me filmes que perturbaram como “Bleu”, filmes que me passaram ao lado como a adaptação das Bronte em “O Monte dos Vendavais”, pirosices que me custaram a perdoar como “Jet Lag”, coisas simples e bonitas como “Chocolate”, excelentes como “Caché” ou medíocres como “Maria Madalena”…Mas a relação foi sempre de enorme proximidade com ela. Lembro-me de ir ver “Um Divã em Nova Iorque” duas vezes ao King, de tal maneira a sentia como antídoto ao tédio e solidão.
A sua consagração pelo Paciente Inglês roubou-me da relação quase exclusividade que ambos tínhamos. Passa a ser a mais internacional das actrizes francesas. Longe de ser o seu filme mais brilhante. O óscar por Paciente Inglês não foi, admite, das suas mais ambiciosas transformações. Refere-se a ele como óscar de presença.
Binoche disse na apresentação do referido documentário que há que perseguir os sonhos. Mas que a realização dos mesmos é um processo dinâmico. A vida pode-nos atirar novos a qualquer momento. Há que persegui-los auscultando a vida e suas insidiosas pistas. Mas um sonho permaneceu intacto desde que a vi no ecrã! Conhecê-la! Aconteceu no dia 6 de Novembro no Estoril Film Festival! As minhas mãos tremiam. Quando chegou a minha vez deixei que a costumeira discussão em torno do til no nome João disfarçasse o meu frisson. Depois foi ela mesmo com uma simplicidade e olhar directo desarmante que me perguntou “o que é que fazes?”. A conversa e a dedicatória seguintes (que guardo para mim) foram ambas curtas mas brutalmente significativas para mim.
Na vida conseguimos mudar um pequeno número de coisas significativas se tentarmos com muita força. Mas há toda uma camada emocional que nos acompanhará para sempre. Vê-la transportou-me à tal noite de descoberta. Consegui vislumbrar, comovido, o que de puto solitário permanece em mim (em todos nós penso). É a transcendência da arte, como janela para o mundo e nós próprios que recupera sensações esquecidas.
É a própria actriz que fala das viagens mais ou menos conscientes nas profundezas de si próprias que a câmara lhe permite...também eu vejo no cinema o meu privilegiado código de leitura da minha realidade. Exemplos de exposição temerária como os seus são, nesse capítulo, a minha matéria prima. Obrigado por existires Juliette!
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