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Clint Eastwood – A Idade da Sageza



Existe habitualmente associado à velhice um mito da sageza na idade. A sedimentação de certezas e uma relutante gestão da dúvida geram visões e narrativas pessoais definitivas. Costuma ser a fase, por excelência, da rejeição do provisório patente em expressões de senioridade: “já vi tudo”; “já passei por muito”. Clint Eastwood parece chegar à sua sétima década num desencanto desconstrutivista, no auge da sua frescura perceptiva, próprios de quem ainda tem muito que aprender e provar como, de resto, o afirma explicitamente em entrevistas que concede.

Por esse motivo aprendi a admirar um realizador que contribuiu para a minha vida com alguns dos melhores filmes que já pude presenciar. De todas as suas pérolas, três dizem-nos bem deste Clint cartesiano disfarçado de clássico:

Em Unforgiven parece assumir despudoradamente o quão longínuquo lhe soa a sua fase coboiada. O improvável trio de assassinos expõe-se nas suas fraquezas, na latência da sua relação com o passado e na fragilidade da gestão do presente. Cada bala e assassinato têm o peso que nunca assumiram em filmes de Sergio Leone. O anti-herói age por si e contra si, sem moralismos, num anti-maniqueísmo metodológico. O relativismo moral que desfoca a linha entre a lei e a moralidade redunda na dúvida metódica (na fabulosa personagem de impiedoso agente da lei de Gene Hackman; como na falta de plausibilidade na parte final da trama de Mystic River, como na confusão de valores que a violência da vida pode gerar em questões como a eutanásia: “sinto que ao mantê-la viva a estou a matar” é a frase que Clint afirma em confissão no final de Million Dollar Baby).



Em Mystic River mete a nu as explicações fáceis e estratégias societais de punição. O elo mais fraco (um perturbado mental vítima de abusos sexuais por um padre enquanto criança) é, no filme como na realidade americana, instrumental no seu papel expiatório e suporte do frágil equilíbrio de valores. A explicação para um assassínio numa trivial disputa de afectos entre adolescentes parece relegar-nos para a dimensão ontológica: mostra-nos o quão assoberbante é a realidade para que a possamos contemplar na sua essência.



Em Million Dollar Baby um conjunto de personagens tenta contrariar as respectivas odds sociais. Entre estas, a protagonista vence uma série de obstáculos naturais ao seu sucesso como pugilista, sendo o mais óbvio a sua avançada idade. A teimosia do boxeur, descrita pela absorvente voz-off de Morgan Freeman, só é vencida pela falibilidade dos seus sentidos e a personagem do treinador (o próprio Clint) personifica essa obstinação mas de forma amargurada e contraditória, frequentando eucaristias sem razão pessoal aparente. Mas o final trágico da aprendiza remete para uma outra e irresolúvel questão – a eutanásia – e relega-nos para uma relatividade e uma linearidade inalcançável, geralmente insuportáveis para homens da idade e estatuto de Clint Eastwood.
Quantos de nós não gostariamos de envelhecer assim...

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