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CAOS Calmo



O dispositivo encontrado para o tal Caos Calmo é um pátio em que o pai, ausente no momento da morte da sua mulher, espera diariamente, em contrição, à porta da escola da sua filha que ela termine as suas aulas. É nesse pátio que uma série de interacções urbanas e impessoais se vão gradual e credivelmente estreitando. Ali tudo se passa devagar longe de um quotidiano triturador que não dá tréguas. Ali vai Moretti tentar enfrentar os seus fantasmas, digerir o fim abrupto de uma relação. Não o consegue de imediato. Encontra uma inesperada dificuldade em deixar que a tristeza se impregne.

Ele luta com um “luto encravado”, uma tentativa de fuga à dor e à dureza do “seguir em frente”, criando manias e um universo pessoal de segurança – o tal pátio e a proximidade constante da filha. A excelente cena com Roman Polanski e a surpreendente atitude libertadora e comovente da filha dão, no final do filme, o mote para a aceitação da dor…como começo, como vida, como elemento vital de progresso pessoal. A dialéctica pai-filha nesta busca de respostas é elemento central do filme.

Um dos elementos mais interessantes do filme é facto de a relação de Moretti com a sua falecida mulher permanecer todo o filme relativamente pouco explicada. Não há flashbacks nem grande exposição da sua dinâmica. A culpa e o luto são, assim, trazidos por si à lupa. A personagem da sua cunhada (Valeria Golino) acentua ainda mais essa dúvida com uma leve sugestão de adultério cuja credibilidade é traída pela revelação da sua personalidade neurótica.

A dúvida surgiu: será um filme morettiano? Completamente! Família, perda, culpa, dor. Todos os seus elementos estão lá (é seu o argumento). A questão surgiu pela abstrusa e polémica cena de sexo que suscitou enorme controvérsia (que incluiu, para publicidade “caída do céu” uma firme reacção do Vaticano). Abstrusa por referência à sua persona de “realizador da família”. Essa cena é, contudo, um elemento essencial no filme assim como a sexualidade é um facto pessoal total: presente em tudo, ciclos afectivos e na dinâmica familiar incluídos, na morte, na culpa. A cena, por esse motivo, não é gratuita e a sua crueza assenta bem no trajecto pessoal de interrogação do protagonista e não destoa, sequer, do tom geral do filme. A este respeito apenas os momentos de descompressão musical sejam talvez um pouco exagerados e algo manipuladores.

Excelente e emocionante filme que consegue ser dramaticamente profundo sem perder um saboroso tom de inocência e melodrama.

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