Avançar para o conteúdo principal

Os Filhos de Eisenstein





Certo dia, um amigo com quem conversava sobre cinema, rotulava de “filme de compromisso” a fita Contacto, baseada no romance homónimo de Carl Sagan. Denunciava a análise exageradamente óbvia e polarizada da dialéctica fé/ciência, concretizada nas personagens do padre e da cientista que faria, em espirito de contrição, vergar o seu positivismo científico ao milagre do intangível e divino. Supostamente, o interlocutor veria nesta visão idílica a tradução directa da mediocridade e correcção política da fascizoide (foi a expressão utilizada) sétima arte americana.
A delícia de Carl Sagan, era agarrar conceitos que existissem para lá do alcance da ciência. O filme em questão retrata, pelo contrário, a linha estreita e indefinível que separa a ciência da religião e não vejo nele qualquer simplismo ou compromisso ideológico.
Estudando numa faculdade de ciências sociais convivi muito tempo com esta vaga de originalismo das elites liberais bem-pensantes que, irredutível, se traduz quase sempre num simplismo bem superior ao apontado por eles mesmos.
Desse culto vanguardista a forma mais comum é a crítica ao processo de assimilação dos complexos culturais americanos, concretizado de forma fácil no vulgo “americanização”. Uma frase do actor Jeremy Irons simboliza a pretensão de profundidade e singularidade artística dos europeus: “o cinema americano é como uma puta, paga-se, usufrui-se e esquece-se no dia seguinte, o cinema europeu é uma mulher complexa, que requer sensibilidade, abstracção e que deixa uma marca indelével”.
Existe uma pretensiosa negação do mainstream que arrasa qualquer objecto artístico massificado. A razão apontada até à náusea é a reprodução da hipocrisia e puritanismo americanos.
Para Sergei Eisenstein, o cinema rege-se necessariamente por uma lógica fragmentária e constitui-se como um momento analítico intelectual por excelência, factor de libertação e invenção que torna o cinema num acto de imaginação sem espartilhos ou lógicas causalistas, comum às narrativas. Ele via o cinema como um corte com o mundo, como uma autonomia mas achava, no entanto, que a produção americana não realizava a modernidade do cinema, porque nunca se desprendia de um real representacional, isto é, que mais não fazia do que reproduzir e perpetuar os padrões do mundo burguês. Na verdade estas palavras inscrevem-se numa matriz ideológica também ela dialéctica. Assim, foi numa polarização que se fundou uma primeira tentativa de desvalorização do polarizado cinema americano.
Na realidade, uma representação dual do mundo pode ser pertinente, desde que se alcance a compreensão dessa mesma dualidade. Gilles Deleuze, nos anos 80, defendia que a lógica iconográfica não perde sentido se, o ícone tiver a capacidade de representar uma pura virtualidade, isto é, se for uma expressão de afectos localizados em conexão com a realidade.
Assim, é numa leitura dual e igualmente comprometida, que se desdenha sem contemplações a fórmula americana, num raciocínio dicotómico que não consegue ir além do Complexo (Europa)Vs Superficial (E.U.A.). Estamos perante uma visão dualista da dualidade cinematográfica americana, que tem uma enorme afinidade, ainda que de forma inconsciente, com o raciocínio original de Eisenstein.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Convidado de Honra nº 5 - Jorge Vaz Nande e "As Portas"

Jorge Vaz Nande é colaborador das Produções Fictícias, onde, entre outras funções, gere os conteúdos do blog da empresa. É argumentista da empresa de conteúdos "Bode Expiatório". Fala-nos de várias questões relacionadas com o cinema e guionismo e, em particular, do seu último e original projecto "As Portas". Na tua colaboração com o Bode Expiatório: o trabalho que fazes tem sido feito sobretudo em equipa? Sim, num processo de colaboração e discussão que muitas vezes se estende da equipa criativa até às de produção e artística. Quando trabalhas em equipa, como se gerem diferentes sensibilidades? Quando várias ideias estão na mesa qual costuma ser o processo de decisão? É primordial que os participantes num brainstorm se dêem bem e tenham respeito mútuo pelas ideias de todos. A partir daí, a discussão das soluções criativas faz-se de comum acordo, tendo em conta a sua exequibilidade e eficácia. Existe alguma hierarquia criativa ou todas as vozes são iguais? Todas as i...

Alguns dos Filmes da Minha Vida nº 7 - Unbreakable de M.Night Shyamalan

Um dos filmes da minha vida! Character study realista e mitológico - o ponto alto da matriz do seu realizador. Permanece, desde o seu visionamento no cinema, uma dúvida no meu espírito, que me perturba quando ainda hoje o revejo. Talvez esteja aí um dos motivos mais profundos do meu fascínio O protagonista do filme é obviamente o pai e é o seu percurso de descoberta identitária o foco central do filme. Mas assombram-me as consequências identitárias que a descoberta do estatuto de herói projecta no filho, tema naturalmente não explorado no filme.  Ao natural, e próprio da infância, endeusamento do pai a criança, na sua busca de um espaço vital, vai no processo de formação da sua personalidade tentar deseroicizar e desmistificar a figura paterna para encontrar e construir a sua identidade. Esse processo é neste caso subvertido pela “realidade” do pai-herói. O futuro identitário do rapaz é das questões ocultas que mais me inquieta quando revisito Unbreakable . Como vai a cria...

O Referente de Cavaleria Rusticana - de Scorsese a Coppola

Cavaleria Rusticana é uma peça musical de Pietro Mascagni, estreada em 1890 no Teatro Constanzi em Roma, e baseada num peça escrita por Giovanni Verga. Foi a ópera que disseminou o mito do cavalheirismo rústico dos sicilianos. Uma história de ciume e vingança passada entre os camponeses da Sicília.  Fala de honra, duelos, vendettas.  Foi porventura das primeiras referências culturais ao tal espírito siciliano que mais tarde vieram simplistica e de forma generalista a associar à máfia. A palavra "mafia" deriva do adjectivo siciliano mafiusu, como raízes no árabe mahyas, que significa "alarde agressivo, jactância" ou marfud, que significa "refeitado". Traduzido livremente significa bravo. Desde a sua composição e exibição que vários autores, sobretudo sociólogos, trataram de desconstruir os  pejorativos lugares comuns de cavalheirismo rústico que a ópera corporizou. Mas será sempre uma peça musical que arrasta consigo um referente muito forte que ne...