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"The Expendables" - O Gozo dos Canastrões




The Expendables traz-nos um grupo de amigos canastrões dispostos a gozar consigo próprios.

Dois deles recentemente renascidos. Stallone tomou a seu cargo a revisitação conclusiva da personagen Rocky Balboa. Fê-lo com uma sensibilidade supreendente, respeitando a personagem que o próprio criou, e que John G.Avildsen deu vida, mas também pondo algo do seu próprio percurso reflexivo enquanto estrela caída. Mickey Rourke por sua vez, pôs nas mãos de Darren Aronofsky todas as suas próprias cicatrizes emocionais que a sua diletância de décadas deixou. Foi um enorme acto de fé e coragem que resultou num dos mais emocionantes filmes dos últimos anos (“The Wrestler”).
Toda uma série de canastrões se juntam a esta parada de auto-ironia cumprindo os respectivos type castings para lá da da caricatura: o Eric Roberts vilão empedernido de filmes como “The Specialist” (onde contracena com Stallone), Dolph Lundgreen o brutamontes automato de Rocky 4, Bruce Willis e seu tradicional charme e ironia...

Uma primeira palavra pois para a honestidade de quem não se tenta regenerar ou reinventar à força. Voltam para fazer a única coisa que sabem fazer: cumprir todos os clichés testosterona que este jogo de consola feito filme oferece. Hora e quarenta minutos da mais pura, acéfala e ostensiva (e aborrecida) porrada. Parecem dizer: somos “expendables” (a tradução mutila sem tréguas a ironia do título original) em muita coisa mas para isto ainda por cá andamos.

O ponto alto deste gozo é a condescendência com que Arnold Schwarzeneger abdica para Stallone um aliciante trabalho mercenário com um “deixo isso para ti, és tu que gostas dessas coisas na selva”. Stallone remata o diálogo com um “o problema de atitude dele?!...ele quer ser presidente”. Brincam ambos com o mito da rivalidade que nos tempos áureos sobres eles se alimentava
Stallone diz, durante o filme, frases como “i got my ass kicked” e “life gets to us all”. Parece ser o mote deste reencontro série B. Um filme e sua honestidade não justifica porém (de todo) o seu visionamento. Depois do auto-consciente regresso ao passado que filmes como “Rocky Balboa” e “John Rambo” constituiram, já não era preciso este. A revisitação reflexiva do seu percuso tem um prazo de relevância limitada. Já se percebeu que se sente fora de época e nos quer falar dos sentimentos que isso desperta”. Que isso se torne num filão de legitimação actual...

Este quer ser um filme bronco feito por broncos. Mas da carreira de Stallone fazem parte algumas participações icónicas e muitos dos filmes em que participa estão no panteão de culto que tecem o imaginário pop americano e global. A sua persona de herói omnipotente tão depressa lhe rendeu uma nomeação para o Razzie de pior actor da década em 1990 como uma homenagem honorária nos respeitáveis e elitistas Césares de 1992. É a ironia mediática própria de ícone a que “The Expendables”, risívelmente vazio, e acaba por não render a justiça, própria de um pedaço humano de história de cinema. Cinema enquanto negócio e criador/reprodutor de conceitos e preconceitos culturais e políticos.

Filmes como Rocky (1976), “Fuga para a Vitória” (1979), Rambo (1982), Cobra (1986) foram marcos culturais e políticos no seu tempo. Mas o seu declínio (como em tantos casos) veio por não conseguir interpretar as alterações e a voracidade do gosto público. Filmes como “Oscar” (1991), “Judge Dredd” (1995) significam o fim do seu valor de mercado. Não deixamos de ter a sensação que mesmo que tivesse um tacto mais refinado seria sempre limitado o seu arsenal de adaptação e sobrevivência. Da problemática infância novaiorquina, à estreia na representação enquanto garanhão no softporn “Party at Kitty's and Stud” (1970) até a “The Expendables” não se conseguiam adivinhar grandes inflexões enriquecedoras. Gabe-se-lhe a humildade para o perceber.
Mas algo mais se lhe pede doravante para justificar a sua relevância. Tivemos o Stallone que olha melancolicamente e conclui as premissas morais das suas personagens de sempre. Neste, um outro que parece querer lutar, para seu gozo, pelo direito de fazer filmes em 2010 como os fazia nos anos 80. É que até a violência mostrada, algo gore e exageradamente frívola, parece anacrónica e pouco ajustada às exigências e sofisticação das plateias actuais. Em que ficamos?
    Clint Eastwood criou quase um subgénero e, de certa forma, criou a forja da redenção do brutamontes. Mas fê-lo com uma profundidade que ultrapassa largamente o seu universo pessoal. Introduz no seu percurso de interrogação questões morais complexas que justificam essa luta pela ressureição e que, de resto, gerou obras primas como “Unforgiven” ou “Million Dollar Baby”. “The Expendables” nada disso faz. No meio de toda a pirotecnia fica, curiosamente, como única personagem emocionalmente exposta a desempenhada por Mickey Rourke. É como se Stallone lhe reconhecesse, destacando-o dos gorilas, muito mais que o estatuto de herói de acção caído em desgraça. Um homem que como ele se afundou mas cujas possibilidades da tal reinvenção são reais. Se foi ou não essa a intenção...não deixa de ser uma possibilidade bonita e humilde: o já referido mérito de Stallone.


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