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Convidado de Honra nº2 - O Panorama do Guionismo e Cinema em Portugal - João Nunes, presidente da APAD




Entrevistei o guionista e actual Presidente da Associação Portuguesa de Argumentistas Portugueses, João Nunes. Falamos do guionismo e cinema portugueses, dos seus (pequenos) sucessos e limitações. Trata-se de um testemunho importante e muito franco de alguém com uma vasta experiência e conhecimento do meio (guionista desde 1998).


Como vai o guionismo em Portugal no que à sua evolução técnica diz respeito?
Acho que tem vindo a melhorar muito consideravelmente, essencialmente por três razões: em primeiro lugar, porque começa a haver um grupo considerável de profissionais que vivem exclusivamente desse trabalho, sendo pagos (embora não muito bem) para escrever. Isso inevitavelmente conduz a um apuramento técnico. A segunda explicação, quanto a mim, está relacionada com a primeira, e tem a ver com o reconhecimento da importância desse trabalho. Escrever o argumento já não é só uma coisa que os realizadores vão fazendo quando não estão a trabalhar. Cada vez mais os produtores reconhecem a importância de ter nas mãos um guião sólido, nem que seja para conseguir aceder com mais facilidade aos financiamentos que hoje, como se sabe, são cada vez mais dispersos e sujeitos a critérios mais exigentes. A terceira razão é a maior disponibilidade de fontes de informação, sejam sites, revistas, livros, cursos ou workshops. As sementes vão sendo lançadas e aos poucos alguma coisa vai nascendo.


É possível viver-se de forma financeiramente estável escrevendo guiões em Portugal? E se restringirmos a questão ao cinema apenas?
Como referi na pergunta anterior, já há bastante gente a viver como guionista. A realidade, contudo, é que a maior parte do trabalho vem da área da televisão. Escrever para cinema continua a ser, em muitos casos, um hobby. Eu posso considerar-me uma excepção - já vendi mais de dez guiões de longas-metragens, quatro das quais foram produzidas e outras duas estão em desenvolvimento ou pré-produção. Apesar disso, se for fazer as contas, é à escrita para televisão que fui buscar a maior parte do dinheiro que recebi.


É possível inovar numa indústria tão acanhada como o cinema português? Como é encarado o risco no panorama audiovisual português?
Os portugueses, de forma geral, são avessos ao risco. No caso do cinema, contudo, têm uma atitude completamente bipolar. Ou buscam o risco pelo risco, enveredando por um cinema muito elitista, absolutamente despreocupado com o grande público; ou vão pelo menor denominador comum e se deixam reger por fórmulas comerciais que de fórmulas têm muito pouco, pois até agora têm acertado tanto nos sucessos de bilheteira como eu tenho na lotaria. A inovação possível, do meu ponto de vista, seria uma "terceira via", que alguns autores, em alguns momentos, têm começado a trilhar. Uma terceira via que passará, inevitavelmente, pelo primado das histórias sobre as histerias, sejam elas artísticas ou comerciais.


A propalada barreira entre cinema de autor e cinema comercial existe? E em Portugal é particularmente visível?
Como diz a canção, "Tudo isso existe, tudo isso é triste" mas nem tudo isso tem de ser fado. Portugal é, segundo o último relatório do Observatório Europeu para o Audiovisual, o país da Europa em que menos cidadãos veem o seu próprio cinema. Só 2,5% dos bilhetes vendidos em Portugal em 2008 foram para filmes portugueses. A seguir a nós vem a Bulgária, com o dobro. Em países como Espanha, por exemplo, esses números foram muito superiores, rondando os 15%, o que significou 15 milhões de espectadores contra os 400.000 que viram filmes portugueses em Portugal.
Qual a razão deste estado de coisas? É óbvio que décadas de uma política cinematográfica de autor, em que os "autores" diziam coisas como "Quero que o público se f---!" (João César Monteiro) ou "Não faço filmes para as audiências de hoje, mas para as daqui a 100 anos" (João Mário Grilo) não ajudaram a criar um cinema popular.

Mas as fórmulas comerciais de "cus e mamas" também não têm conseguido inverter o descalabro. A solução passa, como já disse antes, por encontrar um cinema de espectadores que fuja à banalidade dos códigos televisivos e assente no primado das histórias .


Como descreveria o actual panorama do apoio financeiro público para escrita de curtas e longas metragens?

Faz-se muito menos do que se deveria fazer. O ICA deveria apostar claramente nessa área, que faz parte do núcleo das suas competências mais estritas (ou então não sei que competências são essas) e aumentar quer o número total quer o valor dos apoios concedidos à escrita de longas metragens, e criar programas de incentivo à escrita de curtas. Mas não deveria ficar por aqui. Por que não diversificar os apoios, criando, por exemplo, concursos de apoio à escrita diferenciados para profissionais e para estreantes? Ou lançando concursos para premiar guiões já escritos mas ainda não comprados por produtoras, de forma a promovê-los e divulgá-los? Mais importante ainda, deveria haver uma política de continuidade no trabalho. Guiões cuja escrita tivesse sido apoiada pelo ICA poderiam, por exemplo, ter um subsídio directo à produção, independentemente do resultado dos concursos. Há muita coisa para fazer nesse campo.
Mas há outras áreas a estimular. O FICA deveria também investir mais nos apoios directos ao desenvolvimento. Se o Fundo se quer posicionar como uma produtora ou, mais correctamente, como um mini-estúdio, tem de entender que será necessário investir em muitos argumentos para, por um processo darwiniano de selecção natural, conseguir chegar à produção de apenas uns quantos - os mais fortes, mais capazes, mais atrativos.
Finalmente, as entidades privadas como as televisões ou até as distribuidoras poderiam ter um papel mais importante. Apesar das polémicas que na altura decorreram, ainda hoje muita gente recorda com saudade a primeira série de telefilmes da SIC, que serviu de rampa de lançamento para vários novos autores (entre os quais eu próprio, com o "Mustang"). Mas para isso é preciso acreditar na importância das histórias; não se consegue criar nada de bom (ou só muito raramente se conseguirá) a partir de argumentos escritos em meia dúzia de dias, como os "Casos de Vida" da TVI tão bem demonstram.


Quanto ao FICA, qual tem sido o seu impacto? São já visíveis sinais de mudança?
Penso que a opinião generalizada do mercado é que ainda não se começou a sentir realmente o impacto do FICA. Isso não me surpreende nem preocupa particularmente; é necessário tempo para ver resultados. As pessoas que estão à frente do FICA também têm de passar por um período de aprendizagem. O audiovisual é uma indústria de pessoas, no que isso tem de bom e de mau. É preciso aprender a conhecer os parceiros, perceber os mecanismos do negócio, entender o que funciona e o que não funciona, rever as expectativas e afinar o rumo. Acredito que o FICA de daqui a dois anos será muito diferente do FICA de hoje, e que inevitavelmente dará uma contribuição positiva para reverter a situação insustentável de que falava à pouco. Basta fazer as contas: se em Portugal se vendem anualmente cerca de 15 milhões de bilhetes de cinema, bastaria que atingíssemos os 15% de bilheteira espanhóis (já nem falo dos 40% franceses) para passar dos 2 milhões de bilhetes em filmes portugueses. Com 15 filmes produzidos anualmente, dos quais alguns continuarão naturalmente a não ter uma vertente comercial, e outros, tendo-a, serão fracassos, haverá mesmo assim lugar para dois ou três sucessos de bilheteira reais. Se isso acontecer o cinema português ficará mais perto do seu público o que penso que é o objectivo final do FICA.


Qual, para si, o melhor argumento cinematográfico do ano em 2008?

Destaco 2 entre os que vi e/ou li: o excelente "Dúvida", do John Patrick Shanley, e o divertido " In Bruges", de Martin McDonagh. São filmes que conseguem aquele equilíbrio perfeito entre enredo e caracterização de personagens que tanta inveja me faz. Não foram grandes sucessos de audiências, mas também não foram falhanços comerciais, longe disso - encontraram os seus públicos, à medida das suas dimensões, e deram imensa satisfação a quem oos soube ir ver. Em Portugal gostaria de destacar o "Call Girl" do Tiago Santos e António-Pedro Vasconcelos.

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