Avançar para o conteúdo principal

Zidane - Um Retrato do Século XXI



Tão antiga quanto a humanidade é a necessidade de dar sentido ao real. Dramatizamos uma série de eventos impessoais empregando o exagero, ironia, inversão: ferramentas dramaturgicas que lhes conferem significado emocional. É assim numa banal descrição meteorológica como numa narração futebolística. Ela é mitológica e provida de princípio/meio/fim.
A descontextualização espacio-temporal que o filme nos oferece é uma atitude: a negação dos artifícios do drama que torna o futebol um produto inteligível, logo consumível.

O filme sugere, através de citações do próprio atleta, que a memória é fragmentária e frágil. Ora é nessa fragilidade que assenta o monstro mediático – e toda a produção, dramatizada, de significados e concepções mitológicas do desporto. Acelerando a sucessão de "princípio/meio/fim´s" fazem das recordações espuma. Uma, logo outra e mais outra.

Poder-se-ia sugerir que o objectivo do filme seria igualmente bem cumprido com uma montagem de meia-hora sem nos sujeitar ao fastídio de um jogo em tempo real. Mas se o filme quer dar luta a essa transbordância de significados, só poderia, em coerência com o tom de humanização, incluir o jogo na sua integralidade.

É também a profissão futebolística que é brutalmente desmistificada. Não se vê interacção jogadores\público. As imagens transmitem dureza, crueldade. Zidane limpa o suor, cospe inúmeras vezes para o chão, mostra esgares permanentes de dor e de esforço…
Os artifícios da montagem de imagem e de edição sonora servem igualmente esse propósito (artistas foley inventam efeito sonoro do embate entre dois jogadores que jamais soaria assim).
A fotografia dessaturada e granulada transmite um pessimismo cromático também ele significativo e que choca com as imagens intensas dos replays televisivos mostrados.

A música pontua o filme em dois registos distintos. Um minimalismo melancólico que vai ganhando carga emocional com o chegar da decisão com o clímax na expulsão do atleta – expoente máximo da sua humanidade (expulsão que neste sentido este acaso foi uma bênção para o projecto). Neste pico dramático da música reside uma das poucas incongruências do filme.
Todo o filme é também um autêntico ensaio sobre a percepção visual. O plano ao nível do relvado transmite uma noção visual de vulgaridade atlética. O plano no topo do estádio intensifica a noção de pequenez cuja desconstrução icónica do projecto quer atingir. O plano oblíquo que assiste às transmissões televisivas é o instrumento produtor da magia futebolística – noção sobre a qual assenta todo o negócio em toda a sua extensão e especialização.
Fui ao cinema com a ideia pré-concebida que o filme teria uma dimensão de ode plástica ao futebol. Nada mais falso. O atleta é filmado na sua vulgaridade. Não são visíveis nos planos (que cortam muitas vezes a bola) traços inegáveis de genialidade. A frouxidão do chamado trabalho sem bola de Zidane amplia essa ilusão de banalidade desportiva.
Dar 5 estrelas a um filme conceptual filme seria para mim uma negação das possibilidades do cinema. Mas fiquei com a sensação clara de ter visto arte. Nunca menos de 3,5 estrelas.
Este filme vai perdurar…e como algo de experimental sem ser pretensiosamente vanguardista.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Convidado de Honra nº 5 - Jorge Vaz Nande e "As Portas"

Jorge Vaz Nande é colaborador das Produções Fictícias, onde, entre outras funções, gere os conteúdos do blog da empresa. É argumentista da empresa de conteúdos "Bode Expiatório". Fala-nos de várias questões relacionadas com o cinema e guionismo e, em particular, do seu último e original projecto "As Portas". Na tua colaboração com o Bode Expiatório: o trabalho que fazes tem sido feito sobretudo em equipa? Sim, num processo de colaboração e discussão que muitas vezes se estende da equipa criativa até às de produção e artística. Quando trabalhas em equipa, como se gerem diferentes sensibilidades? Quando várias ideias estão na mesa qual costuma ser o processo de decisão? É primordial que os participantes num brainstorm se dêem bem e tenham respeito mútuo pelas ideias de todos. A partir daí, a discussão das soluções criativas faz-se de comum acordo, tendo em conta a sua exequibilidade e eficácia. Existe alguma hierarquia criativa ou todas as vozes são iguais? Todas as i

"A Gaiola Dourada" e a Celebração do Cliché

Há, no filme “A Gaiola Dourada” um geunino carinho de Ruben Alves pelo estereotipo. Ele próprio faz da sua aparição no filme uma afirmação de caricaturalidade. É próprio de alguém bastante inteligente (e/ou esperto) que não quis de todo alienar públicos-alvo e, muito menos, produzir qualquer desconforto na sua comunidade de origem.  Mas também alguém que tentou consciente e integramente ordenar e pôr em jogo uma constelação de ideias e imaginários com que sempre conviveu. Lembrei-me de uma citação de Umberto Eco em torno de Casablanca (salvaguardando as devidas diferências de peso entre os filmes): " Casablanca não é apenas um filme. É muitos filmes, uma antologia [...] Dois clichés fazem-nos rir. Cem clichés tocam-nos. Porque sentimos que eles estão, de alguma forma, a falar entre eles e a celebrar uma reunião" . "A Gaiola Dourada" é uma sublimação da vida que dispensa profundas escavações sociológicas para fixar e ao mesmo tempo relativizar, de um

Notas Soltas e Esporádicas 1 - A continuidade intensificada ou ADD

Dos primórdios até aos dias de hoje assistimos a um aumento prodigioso do número de planos por filme numa perspectiva cada vez mais feroz e sofisticada de “chocar” e surpreender as plateias com novas e poderosas estratégias de ênfase narrativo. O teórico David Bordwell chamou-lhe continuidade intensificada.  Quatro técnicas em particular foram, para ele, centrais neste paradigma estilístico: 1)  Montagem crescentemente rápida: entre 1930 e 1960 cada filme de Hollywood continha um nº médio de planos entre os 300 e os 600. O que dava uma duração média por plano entre os 8 e os 11 segundos. Em 2000 um filme como Almost Famous tinha já 3,8 segundos por plano, a título de exemplo. 2)  Extremar das distâncias focais escolhidas: a continuidade tem crescentemente sido intensificada também pelo uso polarizado de objectivas e respectivas distâncias focais para ênfase visual permanente da ação. Um dos marcos nessa evolução foi, por exemplo, o filme de Arthur Penn “Bonny and Clyde”