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"A Gaiola Dourada" e a Celebração do Cliché



Há, no filme “A Gaiola Dourada” um geunino carinho de Ruben Alves pelo estereotipo. Ele próprio faz da sua aparição no filme uma afirmação de caricaturalidade. É próprio de alguém bastante inteligente (e/ou esperto) que não quis de todo alienar públicos-alvo e, muito menos, produzir qualquer desconforto na sua comunidade de origem.  Mas também alguém que tentou consciente e integramente ordenar e pôr em jogo uma constelação de ideias e imaginários com que sempre conviveu.

Lembrei-me de uma citação de Umberto Eco em torno de Casablanca (salvaguardando as devidas diferências de peso entre os filmes): "Casablanca não é apenas um filme. É muitos filmes, uma antologia [...] Dois clichés fazem-nos rir. Cem clichés tocam-nos. Porque sentimos que eles estão, de alguma forma, a falar entre eles e a celebrar uma reunião".

"A Gaiola Dourada" é uma sublimação da vida que dispensa profundas escavações sociológicas para fixar e ao mesmo tempo relativizar, de uma vez por todas, o papel dos imigrantes portugueses no imaginário dos franceses e dos portugueses que cá ficaram. “Dois clichés fazem-nos rir, cem clichés tocam-nos”.

É no imaginário colectivo que o filme se aloja sem pretensão de ruturas: a ética de trabalho como elemento de orgulho identitário do emigrante português; clássicos como a folclórica ostentação das férias no “Verão Português”; o futebolocentrismo; para além das referências culturais óbvias como o fado, o bacalhau... É também nas convenções do melodrama e da comédia ligeira de costumes que o filme se faz. Não é nem quer ser um grande filme mas tem a sobriedade de o saber.

É no senso comum que os portugueses se representam e se vêm a si próprios, que os preconceitos e complexos se sedimentam. Ruben Alves reconhece-os e ridiculariza-os dessacralizando-os e esvaziando-os da seriedade e do peso próprio das piadas (que franceses e portugueses, de resto, partilham). As piadas estão no ecrã, há que rir. Um comic relief feito de agruras e conquistas. Catártico e pós-sociológico.


É o tipo de honestidade descomplexada (e tecnicamente perfeita, já agora) que o nosso cinema ainda está longe de alcançar e que, por exemplo, a nossa crítica se apressa normalmente a desvalorizar. 

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