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Da Pseudo-Intelectualidade Cinematográfica

É por vezes irritante que tudo o que não se compreenda seja classificado defensivamente de pseudo-intelectual. Negar a vastidão e complexidade da arte do cinema é próprio de quem na realidade nunca quis (com toda a legitimidade) aprofundar a sua relação com ele. É, por exemplo, por ser um médium de imagens de familiaridade directa que muitos rejeitam linguagens alternativas ou têm tolerância limitada a ambiguidades. É uma espécie de uma espécie de deformação realista do cinema que leva a que muitos classifiquem de “armado ao pingarelho” tudo o que suscite abstração e reflexão. Algo muito próprio da lógica simples e imediata da era de hegemonia televisiva em que vivemos.

Mas isto não significa que a pseudo-intelectualidade não exista. Mas é um conceito subjectivo. Ela existe quando, por exemplo, um filme se tece inteiramente de citações e intertextualidades que excluem da sua leitura a esmagadora maioria dos espectadores e o faz sem um critério pessoal coerente. Sobretudo quando uma determinada referência não é contextualizada ou emane orgânica e honestamente de algo intrínseco ao filme.

Mas pode existir também numa crítica cinematográfica que encripta o seu conteúdo, mesmo que num suplemento cultural de um diário generalista. Para exemplificar fecho o meu curto comentário com a crítica de Vasco Câmara ao filme de Leos Carax “Holly Motors”. Eis o que uma crítica não deveria ser: distante; codificada e alienante (sobretudo narcisista). Lê-la na sua extensão requer informação que o cronista assume como óbvia. Fá-lo deliberadamente para se colocar num patamar superior de conhecimento e para acentuar a assimetria de informação entre ele e o espectador não cinéfilo.

Deixo-vos com o texto integral e a bold estão alguns exemplos do que seria suposto saber previamente para a sua total compreensão e que facilmente o crítico poderia ter incluído no próprio comentário. Não o fez para não assumir nem criar um terreno comum com o espectador comum –  a minha definição de pseudo-intelectualidade ;)
 
Crítica de Vasco Câmara ao filme “Holly Motors”

“O público? Não sei quem é: um grupo de pessoas que vão morrer daqui a pouco. Não faço filmes públicos, faço filmes privados. Mas convido todos a vê-los”, dizia Leos Carax em Cannes, numa conferência de imprensa em que (se) lembrou de que ali mesmo fora crucificado há anos por causa de Pola X.

. que Pola X foi um seu filme indigesto, feito de ambiguidades e sexualidade incestuosa.

 A boutade expôs-se imediatamente, destapou-se, vulnerabilizou-se: Carax solicita, na verdade, o olhar do espectador. O público é um grupo de pessoas que vai morrer, sim. Ou, e essa é uma das primeiras imagens do filme: um grupo de entidades congeladas. Holy Motors fala-nos de um mundo onde já ninguém olha e já ninguém é olhado. Onde as câmaras de filmar passaram a ser mais pequenas do que as cabeças, onde já não se diz moteur (acção) antes de filmar, mas power - um muito “godardiano” tom apocalíptico, para não esconder de onde é que se vem.

. que se está a referir à era digital e a sua ausência de vida associado ao pessimismo desconstrutivo de Godard que fez da “mentira” do cinema a sua própria matéria fílmica
 
O cinema como uma ilha com um grande cemitério. É tudo isso este filme: Carax rodeia-se dos seus mortos (como Katerina Golubeva, sua companheira e actriz de Pola X, que morreu antes da rodagem de Holy Motors e a quem o filme é dedicado) e dos seus fracassos e lendas (Les Amants du Pont Neuf é os dois).

. que este último filme referido foi uma odisseia de produção de vários anos que implicou, entre muitas e lendárias atribulações, a construção de uma réplica da Pont Neuf fora de Paris e que custou a Carax uma penosa travessia no deserto.

Mas o sentido de autoparódia é tocante, e os planos têm a vontade de provocar a cumplicidade de quem se dispõe a olhá-los - o tal “público” -, o que é inédito no cinema do realizador. (Ou então, já disso nos tínhamos esquecido e ele também.) Sinal de vida na ilha dos mortos de Alexandre Oscar Dupont de Nemours.

. que este último é o nome verdadeiro do realizador

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