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O que tem o The Godfather de tão intemporal?!





A saga cinematográfica “O Padrinho” (falo apenas das Partes I e II) possui uma qualidade indizível. Tem propriedades que lhe conferem uma intemporalidade invulgar na história do cinema. É para mim, pessoalmente, um filme de fascínio que consigo reviver a cada visionamento caseiro. Perceber este apelo perdurante é algo que sempre tentei fazer, mas de forma intuitiva e desorganizada. Vou tentar pôr alguma ordem nesses misteriosos estímulos enumerando alguns deles :

identificação/repulsa
Somos tão fortemente atraídos para o mundo das personagens que mal reparamos que nós/eles passaram determinada fronteira de comportamento socialmente aceitável. Estamos sempre perante a ambivalência de ver acções que parecem justificadas pelo contexto social em que acontecem mas que, de alguma forma, sancionamos moralmente, com maior ou menor grau de consciencialização. Ambos os filmes permitem às plateias participarem em acções proibidas e tirar daí fruição mas sempre na instável e perturbante fronteira da normalidade e da legitimidade dessa mesma fruição e do entretenimento que oferecem.

mais do que etnia vemos a universalidade da família
Um dos seus factores de sucesso dos filmes é que apesar de enquadrados claramente na identidade étnica italo-americana, eles transcendem-na para uma universalidade assente nos conceitos de família. Assim, pode-se afirmar que a motivação primordial do clã Corleone não é a ganância ou o desejo de aceitação e integração na américa WASP. É sim a preservação dos valores familiares que, num cenário criminoso, rege as acções e que nos identifica. É o afastamento desse core value que representará o declínio do protagonista Michael e, consequentemente, de toda a família.

superação do género "gangster movie"
Enquanto o tradicional filme de gangsters apresentava uma punição final do da amoralidade criminosa, O Padrinho apresenta um gangster que enriquece e se consegue integrar numa identidade americana mas com o custo trágico da sua própria etnicidade e identidade familiar. Nós somos levados a admirar a devoção de Michael e seu pai Vito à família e também a lógica de protecção do fraco que a fundou mas somos também confrontados com a perdição do desejo insaciável de sucesso do primeiro.

O Padrinho é muito mais do que uma história de perdição capitalista. É um autêntico tratado sobre as complexidades de negociação de identidade: seja assente na família e etnia, seja como cidadão dos EUA e participante ávido do sonho americano. Percebemos que qualquer processo de assimiliação envolve ganhos e perdas. É um dilema moral que está na génese do país e que os diversos grupos étnicos tiveram que enfrentar.

ambiguidade moral
Não existe uma moral óbvia neste conto épico. Moralizar a análise deste filme seria simplificá-lo ao limite da esterilidade. É a coexistência complexa de uma componente evocativa e de uma outra provocatória que estabelece a resistência destes filmes ao tempo e à datação. É esta a força do mito: fornecer um recurso de interrogação sobre as questões culturais mais complexas e primordiais que regem a nossa existência pessoal e sócio-cultural.

intimidade/distância
Os Padrinho parecem cultivar uma enorme intimidade com o univeso das personagens mas há uma certa propriedade em ambos os filmes que, ao mesmo tempo, nos distancia. Parecem ter ambos um look frio e uma ausência de vida que nos mantém à distância. Até as emoções mais privadas são tratadas com enorme cerimónia estilística. São-nos quase apresentadas na forma de abstracções num continuum de solenidade e formalismo dramático. O passado é projectado não como uma realidade verosímil mas como um tableau, uma projecção artificial ou como uma tácita textura arqueológica. São, em muitos aspectos, dois filmes emininentemente barrocos. Também a produção elaborada e a duração dos filmes lhes confere uma anestesiante grandeza e glamour que funciona como agente de ironia e distanciamento do efeito potencialmente corrosivo da ligação implícita dos costumes da Mafia e de uma certa ideologia burguesa.

conclusão
Sempre percebi nos dois filmes uma qualidade mitológica que foi matéria prima para a forte catarse que o cinema clássico “capitalizou”. Mas percebo para minha surpresa, depois desta análise, que é sobretudo na violação de certas expectativas mitológicas e de uma monolítica estrutura da narrativa cinematográfica americana que o filme ganha o desafio com o tempo e se “enterra” definitivamente no meu imaginário (e de milhões de outros espectadores, sejam cinéfilos ou pipoqueiros).

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