
Um homem, doente em estado terminal, está focado nas suas ligações humanas primárias em fusão completa com a natureza. O espírito da sua mulher volta para cuidar dele e o seu filho, desaparecido há muito, retornando sob a estranha forma de macaco negro de olhos brilhantes. Em busca de explicações para a sua longa vida, Boonmee deambula com a família pela floresta até encontrar uma gruta onde ocorreu o seu nascimento na sua primeira vida...
O tio Bonme encara a sua recta final com uma evidente serenidade. A sequência da sua morte é o momento mais forte e impressivo. A câmara está muitas vezes na subjectividade dos espíritos (ou do espectador). Vemos esta "viagem" com tempo, com a solenidade de uma recepção de estado.
A cosmovisão do realizador está entre o ingénuo e o perturbador e nessa ambiguidade reside o principal interesse do filme. O trabalho do som e as sombras na escuridão na floresta é uma referência sinistra, já o conforto quase maternal que Bonmee encontra no espírito da sua mulher é puro e ternurento.
É num plano conjunto, à mesa de jantar, que a primeira aparição se dá. A partir daí os espíritos tornam-se parte natural do cenário e o real e a fantasia diluem-se irremediavelmente. Torna-se, por vezes, difícil ver para além da estereotipada "floresta assombrada" e do lirismo estilizado de que se tece o filme. Mas parece ser essa a sua intenção. Representar a pureza no seu estado extremo. O filme paira. O seu ritmo é irredutivelmente fiel a isso: planos impiedosamente longos e descritivos.
É a primeira longa-metragem do tailandês Apichatpong Weerasethakul a chegar a Portugal, apesar de já ser a sua quinta obra. Chega com um ano de atraso depois de ter ganho a Palma de Ouro no Festival de Cannes 2010. Premiar filmes de digestão difícil como este suscita sempre acusações: "Cannes já foi um prestigiado concurso mas hoje é pouco mais do que uma snob reacção ao absolutismo comercial americano" dizem logo alguns. O prémio foi polémico pelo seu formalismo duro. Conta quem esteve na sua exibição no certame que algumas pessoas sairam da sala desagradados com a falta de identificação que o filme gera. Isto porque a sua intelectualidade reside na reflexão da imagem - um exercício desconstrutivo a quem nem todos aderem. Assim, por mais evidente algum do seu apelo primordial, é difícil ver para lá da sua subversão.
Tem também uma forte e críptica (para muitos de nós) dimensão cuturalista que, contudo, não fecha o filme a uma leitura clara. Há tanto de tailandês como de universal por mais difícil que seja a descodificação das suas leituras mitológicas. É este ingrediente desestabilizador de uma narrativa que se aparenta inteligível mas não é bem que desconcerta e move a nossa atenção (ou provoca a repulsa de outros).
É sempre fascinante neste jogo global de cotações artísticas ver como um pouco conhecido Weerasethakul se converteu numa referência com um filme tão pessoal e como as barricadas se erguem, nestes casos, entre os "cinéfilos" e os "outros".
Comentários