Tão antiga quanto a humanidade é a necessidade de dar sentido ao real. Dramatizamos uma série de eventos impessoais empregando o exagero, ironia, inversão: ferramentas dramaturgicas que lhes conferem significado emocional. É assim numa banal descrição meteorológica como numa narração futebolística. Ela é mitológica e provida de princípio/meio/fim.
A descontextualização espacio-temporal que o filme nos oferece é uma atitude: a negação dos artifícios do drama que torna o futebol um produto inteligível, logo consumível.
O filme sugere, através de citações do próprio atleta, que a memória é fragmentária e frágil. Ora é nessa fragilidade que assenta o monstro mediático – e toda a produção, dramatizada, de significados e concepções mitológicas do desporto. Acelerando a sucessão de "princípio/meio/fim´s" fazem das recordações espuma. Uma, logo outra e mais outra.
Poder-se-ia sugerir que o objectivo do filme seria igualmente bem cumprido com uma montagem de meia-hora sem nos sujeitar ao fastídio de um jogo em tempo real. Mas se o filme quer dar luta a essa transbordância de significados, só poderia, em coerência com o tom de humanização, incluir o jogo na sua integralidade.
É também a profissão futebolística que é brutalmente desmistificada. Não se vê interacção jogadores\público. As imagens transmitem dureza, crueldade. Zidane limpa o suor, cospe inúmeras vezes para o chão, mostra esgares permanentes de dor e de esforço…
Os artifícios da montagem de imagem e de edição sonora servem igualmente esse propósito (artistas foley inventam efeito sonoro do embate entre dois jogadores que jamais soaria assim).
A fotografia dessaturada e granulada transmite um pessimismo cromático também ele significativo e que choca com as imagens intensas dos replays televisivos mostrados.
A música pontua o filme em dois registos distintos. Um minimalismo melancólico que vai ganhando carga emocional com o chegar da decisão com o clímax na expulsão do atleta – expoente máximo da sua humanidade (expulsão que neste sentido este acaso foi uma bênção para o projecto). Neste pico dramático da música reside uma das poucas incongruências do filme.
Todo o filme é também um autêntico ensaio sobre a percepção visual. O plano ao nível do relvado transmite uma noção visual de vulgaridade atlética. O plano no topo do estádio intensifica a noção de pequenez cuja desconstrução icónica do projecto quer atingir. O plano oblíquo que assiste às transmissões televisivas é o instrumento produtor da magia futebolística – noção sobre a qual assenta todo o negócio em toda a sua extensão e especialização.
Fui ao cinema com a ideia pré-concebida que o filme teria uma dimensão de ode plástica ao futebol. Nada mais falso. O atleta é filmado na sua vulgaridade. Não são visíveis nos planos (que cortam muitas vezes a bola) traços inegáveis de genialidade. A frouxidão do chamado trabalho sem bola de Zidane amplia essa ilusão de banalidade desportiva.
Dar 5 estrelas a um filme conceptual filme seria para mim uma negação das possibilidades do cinema. Mas fiquei com a sensação clara de ter visto arte. Nunca menos de 3,5 estrelas.
Este filme vai perdurar…e como algo de experimental sem ser pretensiosamente vanguardista.
Comentários